Por Sérgio Franco
Falar do Niggaz sem cruzar a trajetória de artista com a biografia nos
distancia de um dos maiores méritos de seu processo de criação: a conexão da
vida com a obra. Ele sempre soube tirar o melhor partido da experiência que
teve, projetando-a com toda potência na expressividade plástica. Gustave
Flaubert, abordando este processo, também vai encorajar o pintor Ernest Feydeau
a fazer uma pintura no leito de morte de sua esposa. Em uma carta vai dizer:
“Você viu e vai ver belos quadros, e poderá fazer bons estudos. E pagá-los
caro. Os burgueses mal desconfiam de que lhes servimos o nosso coração. A raça
dos gladiadores não está morta: todo artista é um deles. Diverte o público com
suas agonias.”[1]
O Niggaz por sua vez, não registrou a dor dos outros como foco de sua
expressão, mas a própria, maquiada numa ficção. Recriou o mundo para ele fazer
sentido, diminuindo o absurdo da existência para um jovem de periferia com um
talento descomunal. A sua inadequação é para nós um índice de como se acolhe um
jovem da periferia numa realidade distinta da sua origem.
Alexandre Luis da Hora Silva, Niggaz, faleceu aos 21 anos, em 29 de
abril de 2003, nas águas da Represa Billings, antes disso deixou uma obra que
marcou o seu tempo, o que havia de vida nele permanece entre nós. Para nós que
não entendemos o que se passou para haver este destino trágico, fica a
pergunta: como um jovem dotado de tais poderes mágicos de criatividade pudera
ter encontrado morte prematura?
Niggaz no Beco Aprendiz
Objetivamente, jamais poderemos dar precisão para este desfecho, mas por sua trajetória podemos encontrar um sentido para sua obra. Por meio dela, emergem características importantes de uma vida na metrópole, vista e vivida por um sujeito oriundo da sua margem: Jardim Eliana (Grajaú – Zona Sul), na periferia da cidade, lugar onde cresceu. O graffiti surgiu para ele como instrumento de construção de um caminho para outras paragens, lugares distantes e cheios de barreiras, por onde seus amigos de bairro não se imaginavam antes dele. Niggaz ultrapassou obstáculos reais e simbólicos que levavam até o mundo da arte, e seus parceiros encontraram percursos possíveis com este estímulo.
A nave espacial que ele fez no beco da Rua Belmiro Braga (Vila Madalena)
foi a síntese deste processo. A nave está a caminho de algum lugar imaginário,
um outro mundo, para tanto é bem equipada para a viagem: cheia de dispositivos,
botões, teclados de um computador central, monitores de controle, etc. Mas o
comandante desta nave não a move por livre e espontânea vontade, nas suas
costas há um homem com um revolver na mão, ameaçando-o enquanto ele observa um
monitor na sua lateral. Ele também segura o manche e tecla nos equipamentos da
nave, parece dominar um processo complexo para colocá-la na rota de sua viagem.
Junto da cabine ele é auxiliado por uma mulher, a co-pilota de sua jornada. Não
podemos saber o destino que perseguem, mas supomos, como num sequestro, que
talvez não exista retorno.
Uma das principais características de Niggaz era ser romântico, amante
do afeto, sempre disposto a dedicá-lo e carente em recebê-lo. As experiências
sentimentais intensas sempre povoaram sua trajetória, recorrentemente aparecia
com o desenho de uma mulher pela qual se apaixonara e os amigos apaixonavam-se
por derivação, através de seu trabalho. A mulher ao seu lado na nave do painel
do ‘Beco’ é o elemento que lhe dava estímulos para transpor as distâncias, que
o acompanhava na viagem e lhe fornecia o afeto e a compreensão para diminuir as
turbulências de sua vida, foi ela também que lhe trouxe uma das maiores
desilusões.
Contudo, Niggaz é pioneiro, foi o primeiro grafiteiro que chegou à Vila
Madalena vindo de uma origem social mais baixa, também o primeiro que fez estes
grafiteiros de classe média circularem pela periferia. Quando então, além de
reconhecerem as distâncias que ele ultrapassara, passaram a valorizar a sua
disposição em transpô-las.
[1] G. Flaubert, carta a E. Feydeau,
primeira quinzena de outubro de 1859. In: Correspondance, t. IV, p.340.
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